01 de maio de 2017, Canguru Online – 

A abordagem foi criada há mais de trinta anos pela americana Jane Nelsen, uma terapeuta de casais e famílias da Califórnia.

Luiza, de 4 anos, ajuda a colocar a mesa e arrumar o quarto| Foto: Moacyr Lopes Junior / Malagueta

Por Verônica Fraidenraich

TER DE IR à escola todos os dias da semana nem sempre é visto com bons olhos pelas crianças. Sono, vontade de ficar em casa brincando ou junto com o irmão são alguns dos motivos que levam os pequenos a reclamar dessa rotina. Com Maria Luiza, 4 anos, não era diferente. Não raro, ela chorava e resistia quando tinha de se arrumar para sair. Até que, na primeira reunião familiar promovida pela mãe — a pediatra mineira Juliana Cordeiro de Melo Franco, 44 anos —, a criança decidiu mudar de comportamento. Maria Luiza definiu como meta não mais chorar na hora de ir à aula. E conseguiu cumprir a promessa. Depois, feliz com o feito, quis contar na escola que amava aquele lugar — o que o fez junto com a mãe.

Isso aconteceu há nove meses, quando a pediatra passou a usar em casa a disciplina positiva, uma abordagem pedagógica baseada em respeito mútuo e cooperação, que visa a ajudar os pais na educação dos filhos. Considerada um meio-termo entre a forma rígida e a permissiva de educar, tal proposta defende a liberdade com ordem — os pais dão limites aos filhos, porém, sempre que possível, com opções de escolhas — que demonstrem respeito por todos.

A abordagem foi criada há mais de trinta anos pela americana Jane Nelsen, uma terapeuta de casais e famílias da Califórnia, que é doutora em educação, mãe de sete filhos e avó de dezoito netos. Segundo Jane, a chave do programa é a não punição. “A disciplina positiva propõe tratar as crianças com dignidade e respeito, usar o encorajamento para que desenvolvam o sentimento de pertencimento e a noção da importância de ensinar a elas habilidades para que se sintam capazes de contribuir em casa e com a sociedade”, disse a terapeuta por e-mail a Canguru (leia abaixo a entrevista com a autora). Jane e diversos coautores já escreveram dezoito livros sobre o assunto, dois deles traduzidos no Brasil pela Editora Manole — Disciplina Positiva, em 2015, e Disciplina Positiva em Sala de Aula, no mês passado.

Os adolescentes, os primeiros três anos de vida e os pais solteiros são o alvo de algumas das outras obras da série.

Ferramentas práticas

Baseada no trabalho de dois psiquiatras vienenses – Alfred Adler (1870-1937) e Rudolf Dreikurs (1897-1972), essa maneira de educar não apresenta um passo a passo nem uma fórmula pronta, mas sim critérios e ferramentas práticos para as situações mais comuns que a criança enfrenta segundo sua faixa etária — como as explosões emocionais, entre 2 e 3 anos. No livro Disciplina Positiva, Jane Nelsen afirma que, à medida que os pais se aprofundam nos princípios básicos, as aplicações se tornam mais fáceis. Ela orienta para que as pessoas tentem um método de cada vez. “Use apenas o que fizer sentido para você.”

Maria Luiza, de 4 anos, parou de chorar na hora de ir à aula | Foto: Gustavo Andrade

Entre as várias ferramentas disponíveis estão envolver as crianças na definição de limites, focar nas soluções e promover reuniões familiares (leia mais sobre as ferramentas no quadro no final do texto). Na casa da pediatra Juliana, os encontros ocorrem às sextas-feiras, com a participação do marido — o ginecologista Júnio Ribeiro, 44 anos — e dos filhos, Rafael, 15 anos, João Pedro, 13 anos, e Maria Luiza.

A ideia é que a conversa sirva para incentivar a colaboração entre a família, repartindo tarefas domésticas que permitam dar responsabilidades aos filhos e discutindo problemas que cada um enfrenta para tomar soluções em consenso. Foi a partir de uma reunião que o filho mais velho se dispôs a lavar a louça nos fins de semana e Maria Luiza a arrumar os brinquedos. Quando eles não querem fazer nada, a mãe define a tarefa — lavar a roupa, por exemplo — e dá aos filhos outras opções entre as demandas existentes.

Juliana diz que a disciplina positiva a transformou. “Percebo que estou mais calma e meus filhos também. Maria Luiza até brinca dizendo que não me vê mais nervosa”, afirma a médica e coordenadora do pronto-socorro pediátrico do Hospital Felício Rocho, em Belo Horizonte, que já deu palestra sobre o tema em um dos Encontros Canguru.

Para a consultora em educação Bernadette Rodrigues, que participou da tradução dos dois livros de disciplina positiva para o português, são muitos os benefícios dessa abordagem. “As crianças e os adolescentes aprendem a desenvolver habilidades sociais e de vida, como autoconhecimento, autodisciplina, empatia, trabalho em equipe e capacidade para decidir e resolver problemas.” Ela estuda o assunto desde 2008, é membro e certificada como formadora da Positive Discipline Association — a associação americana de disciplina positiva — e também atua como palestrante, coach e professora universitária.

Praticando a empatia

Validar os sentimentos dos filhos é uma das ferramentas que a carioca Juliana Cidade Cardoso, 41 anos — mãe de Mateus, 10 anos, e Lucas, 5 anos —, incorporou ao cotidiano da família há quatro anos. Em momentos de birra, como quando Lucas queria comer um chocolate antes do almoço, ela passou a dizer que entendia o seu desejo e a sua raiva, mas não dava o doce e explicava que aquilo era ruim para a saúde dele. “Lucas tem um temperamento forte, então ele gritava e às vezes até queria bater em mim, mas eu percebi que não adiantava apagar o fogo com mais fogo.”

Em vez do castigo ou da palmada, Juliana preferiu mostrar ao filho formas positivas de se expressar — batendo numa almofada para descarregar a raiva, por exemplo. A conversa fica para depois, quando todos estão mais calmos. “Não queria mais seguir modelos baseados em punição e recompensas e me identifiquei completamente com essa abordagem baseada em empatia, conexão e vínculo.”

Lucas, de 5
anos, bate na almofada
para descarregar a raiva
Foto: Ricardo Borges

Tamanha paixão fez com que Juliana se tornasse consultora de educação positiva certificada pela associação norte-americana. Hoje, ela ministra workshops e palestras e coordena um grupo de estudos sobre o tema, entre outras atividades. “Vejo quanto meus filhos sentem-se felizes de serem tratados de modo amoroso e empático, e eles reproduzem esse comportamento em outros ambientes, pois é o que vivenciam em casa.

Em geral, as mães descobrem a disciplina positiva enquanto buscam informações que as auxiliem na criação dos filhos. Foi assim com a professora de inglês paulistana Yara Tropea, 36 anos, mãe de Pedro, 10 anos, e Luiza, 4. “Eu assistia a um programa na televisão sobre o cotidiano das famílias e sabia que não queria aquele tipo de educação, mas não conhecia outros modelos e me sentia perdida.”

Na internet, ela encontrou textos relacionados à proposta, gostou do que leu e decidiu pôr em prática com a família. Por coincidência, a escola de línguas onde foi trabalhar tempos depois também seguia a abordagem. Yara relata que costuma ressaltar as atitudes positivas dos filhos, de seus alunos e até dos amigos. “O mais comum é chamar a atenção para o que não deve ser feito, mas acho válido praticar o encorajamento — se Luiza arruma o quarto, por exemplo, comento o que ela fez e reconheço o seu esforço.” Ensinar a ser colaborativo e ajustar as expectativas são outros preceitos seguidos pela professora. “Quando vamos sair, explico o que vamos fazer, quais são as regras do lugar – no cinema não dá para conversar — ou mesmo a que horas vamos voltar, pois isso ajuda a evitar frustrações e desentendimentos.”

Na casa de outra Yara, desta vez uma bebê de 10 meses que vive na capital paulista, foi o pai, Yuri Faiani Branco, 29 anos, quem se encantou com a temática. Proprietário de uma livraria, ele soube do assunto por meio da sócia, que fez um curso com a consultora Bernadette Rodrigues. “Se ela chora, procuro entender suas necessidades e sempre que possível evito dizer o ‘não’, direcionando sua atenção para outro atrativo, como quando ela quer mexer em algo que não pode.” Yuri ressalta que a mulher, Lígia, 31 anos, trouxe outras abordagens relativas à maternidade e eles acabam mesclando um pouco de tudo que acreditam fazer sentido para a família.

Tanto em casa quanto na escola, a mudança do clima para melhor e a busca por soluções — e não pelos culpados — são outros frutos dessa filosofia educativa, relata Fernanda Lee, que é treinadora certificada em disciplina positiva para pais e professores. Ela vive em San Diego, na Califórnia, Estados Unidos, e também ajudou a traduzir o livro Disciplina Positiva em Sala de Aula. “Ao ver que o adulto se importa com ela, a criança sente-se valorizada, e isso favorece a atmosfera do ambiente, que fica mais agradável, um dando suporte ao outro.”

Infografia Canguru

5 perguntas para Jane Nelsen

Foto: Divulgação

Em entrevista à Canguru, a terapeuta norte-americana Jane Nelsen, criadora da disciplina positiva, fala a seguir sobre critérios da abordagem, punição e desafios para os pais

Para quem nunca usou a disciplina positiva, qual o maior desafio?
Ajudar as pessoas a entender que, mesmo que a punição e as recompensas funcionem a curto prazo, elas não ensinam os valores sociais nem as habilidades de vida de que as crianças necessitam a longo prazo para se tornarem membros bem-sucedidos da sociedade.

Levando em conta que a disciplina positiva exige tempo para a prática, como pais que passam poucas horas por dia com seus filhos podem usar o programa com sucesso?
A qualidade do tempo é tão importante quanto a sua quantidade. Crianças podem aprender a se sentir capazes e conectadas em poucas horas por dia.

Por que a educação com punição é uma prática tão comum? E como a disciplina positiva sugere substituí-la?
Para muitos pais e professores o pensamento funciona, mesmo que haja um custo a longo prazo. Várias crianças que são punidas se tornam rebeldes ou complacentes. A disciplina positiva ensina ferramentas que são mais eficazes a curto e longo prazo. Quando os pais e professores aprendem (e realmente entendem) isso, eles ficam felizes em deixar as punições de lado.

Desde que a disciplina positiva surgiu, há mais de 30 anos, a sociedade mudou muito, assim como o comportamento das pessoas. Como a abordagem faz para se manter atual nos dias de hoje?
O fato é que todas as pessoas, inclusive as crianças, querem ser tratadas com dignidade e respeito, bem como aprender as habilidades que as ajudarão a ser bem-sucedidas na vida.

Há dados sobre quantas pessoas usam a disciplina positiva no Brasil e no mundo?
Eu não sei bem ao certo. A disciplina positiva tem crescido por todo o mundo. Acabou de acontecer a primeira conferência sobre o tema na Europa, em Barcelona, com 130 treinadores certificados, de 24 países. Em maio, a China fará a quinta
conferência a respeito do assunto. E no último evento, nos Estados Unidos,º havia representantes de dezenove países.