11 de outubro de 2017, MultiRio –
As crianças que se sentem conectadas à família, à escola e à comunidade em que vivem, tendem a apresentar uma incidência menor de comportamentos inadequados. Para entender melhor como funciona a Disciplina Positiva, o PORTAL MULTIRIO foi conversar com a brasileira Fernanda Lee, mestre em Educação e conselheira internacional do Corpo Diretivo da Associação de Disciplina Positiva nos EUA, e a holandesa Diana Nijboer, fundadora e diretora da ONG EduMais.
Disciplina Positiva é uma metodologia desenvolvida pela norte-americana Jane Nelsen, mãe de sete filhos, há mais de 30 anos, com base na teoria de dois vienenses, o psicólogo e professor Alfred Adler e seu aluno, o psiquiatra Rudolf Dreikurs. A proposta se baseia na firmeza da educação em lugar dos castigos e hoje já vem sendo aplicada em 24 países, inclusive no Brasil. Desde a visita de Jane, em 2015, seus livros começaram a ser publicados no país, workshops vêm certificando educadores no método e cursos presenciais e on-line têm sido oferecidos a pais e professores. As bases partem do pressuposto de que, quando as crianças se sentem conectadas à família, à escola e à comunidade em que vivem, tendem a apresentar uma incidência menor de comportamentos inadequados.
“A nossa sociedade está mudando. As estruturas familiares são mais híbridas, há mais espaço para expressão da sexualidade não convencional e as escolas começam a repensar o seu papel na educação das crianças do século XXI. Em tempos atuais, percebo indivíduos, famílias e escolas à procura de informações que possam servir de base para uma sociedade que se expressa de forma mais democrática, criativa e dinâmica. O objetivo primordial da Disciplina Positiva é ensinar ferramentas práticas para o desenvolvimento de crianças e adolescentes que virão a ser cidadãos responsáveis, respeitosos e com recursos internos para contribuir com a sociedade”, explica a brasileira Fernanda Lee, mestre em Educação com especialização em Orientação Educacional pela Point Loma Nazarene University. Morando nos Estados Unidos com o marido e dois filhos, que considera seus maiores professores, Fernanda ocupa a posição de conselheira internacional do Corpo Diretivo da Associação de Disciplina Positiva e tem sido a grande responsável pela divulgação da metodologia entre os brasileiros.
Benefícios chegam a crianças e adolescentes cariocas
Para entender melhor como funciona a Disciplina Positiva, o PORTAL MULTIRIO foi conversar com a holandesa Diana Nijboer, fundadora e diretora da ONG EduMais. Com graduação em Recursos Humanos e mestrado em Administração, Diana costumava dar treinamento a executivos e trabalhar com coaching, enquanto ainda morava na Europa. “Sempre fui uma apaixonada pelo desenvolvimento humano. Em 2012, acompanhei meu marido ao Rio de Janeiro e fiquei encantada com a cidade e, mais ainda, com as crianças daqui. Achei que elas são tão inteligentes, tão cheias de vida e resiliência, que propus a mim mesma o desafio de criar mais oportunidades para elas.”
Quando não conseguiu um emprego formal, Diana começou a atuar como voluntária em diferentes organizações, como no extinto orfanato da Casa do Caminho, localizada em Xerém, no município de Duque de Caxias, onde dava aulas de Inglês. Por meio dos contatos que fez, há quatro anos conheceu Glenda Montgomery, que já trabalhava com Disciplina Positiva, e começou a se aprofundar na metodologia, ao mesmo tempo que recebia a tutoria da norte-americana. A conspiração favorável também levou Diana a conseguir um espaço físico no Solar Meninos de Luz, que fica na comunidade do Pavãozinho, situada entre os bairros de Copacabana e Ipanema, onde iniciou o trabalho que realiza desde o ano passado. Como a instituição oferece do berçário ao Ensino Médio, a primeira providência foi dar treinamento aos professores da casa.
Atualmente, Diana tem duas frentes de aplicação da Disciplina Positiva no Solar: com os 15 inscritos no curso de Inglês, oferecido duas vezes por semana, em aulas de duas horas, para adolescentes até 17 anos; e com crianças que, das 14h às 17h, três vezes por semana, fazem atividades no contraturno da escola – elas estudam na E.M. Castelnuovo, E.M. Doutor Cícero Penna e E.M. Marília de Dirceu, na 2ª CRE. No momento, são seis meninos e meninas, entre os 6 e os 10 anos, que têm a oportunidade de exercitar sua criatividade e senso artístico, fazer yoga e receber reforço de alfabetização, além de desenvolver suas competências socioemocionais.
Paciência e perseverança são fundamentais
Diana explica que não existe nenhum milagre para operar as mudanças da noite para o dia. “Disciplina é algo que anda em falta no Brasil. Usamos sempre uma frase: ‘preciso que você escute’, embora fosse mais fácil dizer ‘fica quieto’. Quando se diz à criança para não fazer alguma coisa, não fica claro para ela aquilo que deve fazer. Além disso, não é respeitoso. Se começo dizendo ‘preciso que você…’ mostro, em primeiro lugar, respeito por mim mesma. Trabalho com crianças da comunidade, todas alunas de escolas públicas, mas também em workshops com seus pais, que, por sua vez, foram acostumados a receber ordens. Em vez disso, procuramos desenvolver competências socioemocionais que levam a ter mais autocontrole, desenvolver uma reflexão sobre si mesmo e reconhecer a própria responsabilidade diante dos acontecimentos.”
Quando um aluno insiste em conversar durante a aula, existe um procedimento-padrão. “Chamamos para ir lá fora e dizemos: eu percebi que você continua falando. O que está levando você a fazer isso? Na maior parte das vezes, esse aluno culpa o colega. Aí replicamos: mas você responde. Por vezes, eles dizem: estou acostumado a fazer isso. Então, oferecemos opções: você consegue ficar quieto ou prefere se sentar em outro lugar? Propositalmente, nos abaixamos e ficamos menores do que a criança, o que é uma forma de dizer que somos iguais em termos de respeito e dignidade. Com o tempo, percebemos que elas começam a melhorar e se ajudar mutuamente. O maior impacto é que estão construindo a qualidade de saber esperar.”
Trata-se, também, de livrar as crianças de uma espécie de condicionamento. “Queremos que elas se conscientizem sobre o sentido de ação e reação, criando o hábito de parar para pensar antes de reagir automaticamente. O autocontrole é importante porque uma mente confusa não entende as informações direito nem consegue memorizar, o que é ruim para a aprendizagem. As crianças da comunidade são traumatizadas porque não têm noção de segurança, já que, a qualquer momento, pode ocorrer um conflito aqui. Estão expostas ao contato com sujeira, drogas, armas e comportamentos sexuais inadequados, o que gera estresse tóxico e afeta seu desenvolvimento cerebral e seu comportamento. Quanto melhor aprenderem a lidar com as emoções, melhor será a vida delas. Precisamos ajudar as crianças a crescer, inclusive servindo de modelo para elas.”
Primeiro vem a conexão, e só depois a correção
“Posso dizer: parece que você está bastante irritado. Assim, demonstro empatia à condição da outra pessoa, sem julgamento. Todos precisam ser vistos e ouvidos, precisamos do reconhecimento de nossas emoções. Mas a questão principal é a forma como você se conecta. É possível se valer da Disciplina Positiva em qualquer idade, mesmo com os mais pequeninos”, explica. Para dar conta de todo o trabalho, Diana conta com a ajuda de 17 voluntários, a maior parte da Grã-Bretanha (cinco), mas também vindos da Nova Zelândia, Estados Unidos, Itália, Holanda, Suécia e Peru, que falam, todos, um pouco de português, e com faixa etária que vai dos 19 anos até a meia-idade. “Tem até alguns brasileiros no grupo, mas a maioria vem de fora, porque, principalmente na Europa, existe essa cultura do trabalho social. Conseguir auxiliares nunca foi problema. Afinal, eu tenho muito background em recrutamento”, brinca.
Mesmo os alunos mais tímidos acabam se soltando, de tanto ouvir incentivos do tipo “eu sei que você consegue”. “Queremos que essas crianças se transformem em solucionadoras de problemas no futuro”, resume Diana. Diante de algum comportamento inapropriado, outra frase costuma resolver o problema: basta dizer, de forma respeitosa, “não é isso o que fazemos aqui”. De acordo com a filosofia da Disciplina Positiva, no entanto, uma criança que se comporta mal é, na verdade, alguém que precisa de encorajamento. Como? “Connect before correct” (conecte-se antes de corrigir), repete a holandesa.
A abordagem da conexão que precede a correção pode se dar de uma forma bem simples, como começar perguntando à criança qual o seu time de futebol do coração. Sempre que necessário, basta invocar a conexão novamente. “Posso chegar para um garoto bagunceiro e dizer a ele: ‘Flamengo, olha aqui esse desenho’, e sempre funciona. Todo mundo precisa se conectar. A chave é encontrar o que é importante para essa pessoa.”
Para cada criança que entra em suas turmas, Diana entrevista os pais, que também são convidados a participar de workshops temáticos. “Mesmo que eles não entendam exatamente do que estamos falando, têm em comum o desejo de um futuro melhor para seus filhos e, por isso, permitem que fiquem conosco. Eu digo: não batam na criança. Quando vocês fazem isso, estão ensinando-a a bater.”
Também existem técnicas próprias para lidar com os alunos nos dias em que estão agitados. “Dizemos que precisamos que fiquem calmos e que vamos esperar até que isso aconteça. Os voluntários e eu ficamos calados, olhamos para o teto, e apenas esperamos. No início, demorava bastante, mas agora o feedback positivo vem rapidinho. Quietude é a ação mais poderosa de todas. Afinal, eles só estão tentando chamar atenção, ou seja, querem se conectar. É muito preocupante quando os pais dizem que vão levar os filhos para uma consulta médica porque devem ter algum distúrbio e precisam de remédio. Não há nada a ser consertado nessas crianças!”, ressalta a educadora.
Diana tem uma visão bastante crítica da Educação nos moldes tradicionais. “Focamos as competências acadêmicas e esquecemos as competências para a vida. Formar adultos responsivos – isso é Educação. Se damos tarefas às crianças, elas veem nisso um trabalho que tem algum significado e se sentem reconhecidas. Percebo que, no Brasil, existe um problema cultural – sempre tem alguém para fazer uma tarefa por você, mas não é esse o melhor caminho.”